Viajar para trabalhar com a formação de professoras e professores é sempre
um aprendizado, desde as mudanças nas ações dos aeroportos (função "seja
seu próprio atendente", como propõe a Gol, que vc faça seu check in,
troque seu acento, limpe a aeronave, rs...) até o mais significativo, porque
permeado de significantes outros, práticas interessantes, debates acalorados.
Por fim, a viagem foi ótima e, na bagagem de retorno, além das lembrancinhas,
muitas questões e, entre estas, as perguntas que não tiveram comentários por
falta de tempo naquele auditório imenso do Centro de Convenções.
Seguem as questões, com meus agradecimentos (nada mais triste que terminar
uma participação em mesa redonda sem perguntas do auditório...):
1. Como viabilizar a construção de um currículo em uma perspectiva contra
hegemônica às ideologias neoliberais quando se está inserido na sociedade do
consumo regida pela lógica do mercado? É preciso uma transformação dos homens,
das relações de trabalho ou da escola?
Indícios de resposta:
É preciso transformar as pessoas, as relações de trabalho e a escola, esta
transformação ocorre de toda a forma e todos os dias, independente de nossa
vontade. Embora a escola possa parecer igual ao que sempre foi, ela está sempre
em transformação, porque é construída, vivida, sentida por pessoas que também
estão em transformação. Talvez a questão seria: como transformar a nossa
prática escolar em uma sociedade que se transforma com base em valores que
queremos superar? Fazemos muitas coisas na escola, nossas propostas
curriculares são diversas e amplas. Algumas coisas que fazemos conservam
valores que queremos superar (injustiça, desrespeito, autoritarismo), outras
coisas que fazemos nos ajudam a caminhar na direção que escolhemos: justiça,
respeito, autoridade e participação. Penso que as práticas democráticas podem
ampliar o que fazemos no sentido que queremos: assembleias para discussão do
que realmente é importante; envolvimento da comunidade nas atividades da
escola, nos estudos de caso, na produção de propostas de trabalho; atitudes
cotidianas de escuta de todos por todos. Estas ações até podem fazer com que
nossas atividades possam demorar mais para serem realizadas, mas fazer com
participação nos ajuda a mudar a escola e a sociedade, porque muda o ambiente
em que as pessoas fazem a escola e a atitude das pessoas neste ambiente. Parabéns
pela sua pergunta, você atenta com razão para a inviabilidade de dissociar a
escola das questões sociais que, presentes na sociedade, também estão presentes
na escola.
2. Como vê o currículo bimestralizado com conteúdos previamente definidos,
frente a sua ideia de ensino conforme os interesses dos alunos?
I.R. (indício de resposta, porque o tempo aqui também é curto): Vejo o
currículo bimestralizado como uma ilusão que se mantém na escola porque
acreditamos que funciona, embora saibamos, pela nossa experiência cotidiana e
pelos estudos que desenvolvemos na formação de professoras e professores, que a
aprendizagem é um processo contínuo, de sempre retomar o que é realmente
importante muitas e muitas vezes (o que contrapõe à ideia da bimestralidade)
durante a educação básica. Todavia, imagino que os conteúdos não são definidos
na hora em que o professor/a professora entra na sala. Compliquei? Trabalhar
com conteúdos que façam sentido para os estudantes, isto é, conteúdos que
possam se tornar eficientes/relevantes para os estudantes, não significa
improvisar conteúdos, ou trabalhar apenas com o que os estudantes dizem ser
interessante. É necessário muito trabalho, nas experiências que acompanho, para
que os estudantes atribuam sentido aos seus estudos escolares. Parece-me que a
pergunta se referiu às propostas curriculares engessadas, que dividem um
conteúdo escolar tradicional entre os bimestres, na suposição de que bastaria
ao professor trabalhar com o conteúdo naquele momento que o conteúdo seria
aprendido pelos estudantes. O problema está menos em ter um conteúdo
previamente definido e mais em fazer esta definição apenas com especialistas
(da Universidade, da SME ou da Escola). Entendo que, no lugar de definir
externamente à escola o conteúdo a ser trabalhado, deveríamos, por meio do
diálogo com as crianças, jovens e adultos, fazer esta definição prévia (não
bimestral, obviamente). Chamo de conteúdo, aqui, a finalidade da experiência
educativa em seu conjunto e as temáticas a serem estudadas que pudessem dar consequência
a finalidade coletivamente construída. Parabéns pela pergunta, você indica a
importância de considerar os interesses dos estudantes e a incompatibilidade de
“propostas prontas por outros” serem compatibilizadas com a ideia de um currículo
relevante para todos.
3. Se o currículo do ciclo é amplo, aberto e flexível, qual é o papel do
livro didático que chega à escola e é entregue aos alunos? Se dissermos que
constitui um norte para o trabalho do professor, não estaríamos, de alguma
forma, “seriando” o currículo do ciclo? Como nos livrar desse comprimido dentro
de um frasco?
I.R.: Penso que o livro didático poderia ser substituído por outro tipo de livro,
livros de estudos com maior qualidade na abordagem das temáticas, mas enquanto
isto não acontece, o livro didático poderia ser utilizado como fonte de
pesquisa, ser distribuído entre as turmas de forma a contemplar livros de diferentes
“números” (livro 1, 2, 3, 4...) não de forma seriada. Parabéns pela sua
pergunta, porque expressa o pleno entendimento de que a organização em ciclos
implica em não seriar o conteúdo escolar, tal qual fazem os livros didáticos.
4. Com relação ao ciclo – agrupamento por idade. Como ver vantagem nessa
forma de ciclo para o aluno que é matriculado pela primeira vez na escola com
12 anos e é colocado em sala com colegas da mesma idade, porém já em adiantado
nível de estudo. Esse aluno estuda um ano no ciclo e é transferido para outra, agrupado
por série. Como assegurar seu sucesso escolar?
I.R.: Como assegurar o sucesso escolar deste suposto estudante se sua
matrícula fosse feita junto a crianças de 6 anos, onde ele teria um tratamento
de crianças de 6 anos, aprendendo temáticas significativas para crianças de 6
anos? Como assegurar seu sucesso escolar sem lhe dar o direito de participar
das discussões, estudos, trocas de adolescentes de 12 anos? Por que, para que
ele aprenda questões que não aprendeu antes na escola, precisamos enturmá-lo
com crianças de 6 anos fazendo com que, na melhor das hipóteses, ele concluísse
o ensino fundamental com 21 anos (12 + 9 = 21)? Seria mais justo e educativo,
parece-me, agrupá-lo entre seus pares na idade e oferecer serviços de apoio no
contra turno escolar para suprir eventuais necessidades escolares. De toda a
forma, parabéns pela sua pergunta, pois ela nos permite provocar duas questões
fundamentais e complementares para entendermos o grupamento escolar em ciclos:
(1) o agrupamento é por idade e não por conhecimento anterior adquirido; (2)
para provocar a aprendizagem não é necessário que as crianças e adolescentes
estejam agrupadas com base em um suposto conhecimento comum; (3) para o
agrupamento em ciclos funcionar é preciso mecanismos de apoio escolar capazes
de oferecer suporte às necessidades que o processo educacional vai
apresentando.
5. Recentemente, em Goiânia, uma escola
municipal foi incendiada por ex-alunos que tiveram uma briga... Posto este
cenário mundial do capitalismo que impõe um padrão, e culpabiliza quem não o
atinge, o que dizer do simbólico envolvido nesse processo do “colocar fogo na
escola”. Será só pela falta de uma boa estrutura física?
I.R.: Penso que apenas a falta de uma boa estrutura física não seria suficiente,
para um grupo saudável, atear fogo numa instituição. Da mesma forma, querer
julgar o que aconteceu, sem conhecer as pessoas envolvidas, a instituição e o
contexto do fato não seria razoável.
Tenhamos, todos os que acreditam em uma educação democrática, um bom final
de outubro!