quarta-feira, 5 de maio de 2021

Ensino Domiciliar: algumas notas para o debate

Em 14 de abril de 2021 fui convidada a participar, representando o Grupo de Trabalho 13 da ANPED, de um Programa da Associação Nacional de Pesquisadores em Educação (ANPED) para discussão do tema. Para aquela participação preparei uma curta intervenção que pode ajudar a discutir criticamente a abordagem da questão. Apresento aqui, de forma mais sistematizada, minha perspectiva:

Em meu ponto de vista, a temática precisa ser compreendida não partindo da pergunta "por que ensinar os filhos em casa?" e sim do debate "por que não permitir que as crianças também aprendam na escola?"

A forma como prefiro abordar o tema decorre do entendimento que a família, a comunidade e a sociedade (esta última de forma mais ampla) já educam as crianças, assim como jovens e adultos. Todavia, opto aqui pelo foco na educação das crianças, uma vez que o cerne do debate se coloca para esta faixa etária. Jovens (acima dos 17 anos) e adultos no Brasil podem se inscrever em Programas de educação a distância e estudar onde pretenderem, prestando apenas provas para obtenção de certificação. 

O que estamos vivendo é uma ampliação de grupos no Brasil que desejam "escolarizar" seus filhos em casa. Ou seja, pretendem ter, mediante sua opção familiar, a possibilidade de não encaminhar as crianças a escolas. O que pode levar a determinadas famílias a desejarem impedir que a escola também eduque seus filhos?

Antes mesmo de visitar e realizar um olhar crítico a sites que organizam movimentos pelo chamado "ensino domiciliar" (talvez o melhor termo seria - impedimento dos filhos de frequentar escolas), alguns argumentos podem nos ocorrem: 

- proteger seus filhos da violência escolar

É importante destacar, que as escolas reproduzem, em geral, a violência que está na sociedade (os valentões/covardes que agridem física ou psicologicamente colegas, as brigas, as práticas de cada um por si, muitas vezes tentando burlar regras e se dar bem em relação aos demais), porém, na escola, o que temos é um corpo técnico - professores, funcionários, coordenadores, orientadores - que trabalham no sentido de coibir estes atos, buscando construir ações que reconstruam relações sociais mais saudáveis entre os que nela convivem, o respeito ao outro, a legitimidade de culturas outras, as práticas de sanção por acordos de melhor comportamento, de auxílio aos demais, etc. A quem pode interessar evitar que seus filhos sejam submetidos a estas formas de convivência e solução de conflitos, assessorada por profissionais com este preparo?

- a necessidade de evitar que os filhos convivam com crianças de outras classes sociais;

As escolas, infelizmente (porque para a promoção da equidade social que poderia melhorar a vida de toda a sociedade no conjunto, esta convivência seria positiva), já possibilitam estas seleções. Existem escolas de ensino fundamental mais caras que Universidades privadas de qualidade. Nenhuma lei impede que a criança estude em escolas privadas de elite, nem obriga a estas escolas a diversificarem seu público. A questão, do ponto de vista familiar, não é evitar a convivência com crianças de outras classes, porque em escolas públicas e privadas isto já acontece.

- a necessidade de prover a educação dos filhos com mais qualidade, em relação ao conteúdo, do que as escolas comumente oferecem

Esta necessidade também não seria um argumento suficiente para afastar as crianças da escola, uma vez que a educação de cada criança é mediada pelos acessos que sua família possui e o enriquecimento curricular que não é impedido (e não teria como ser) pela escola que a criança frequenta. Além de tudo que o meio em que a criança vive lhe ensina em relação a sobrevivência cotidiana, existem tutores, professores particulares, explicadores, programas de intercâmbio que não impedem as famílias de promoverem esta busca de mais qualidade (ou melhor aproveitamento) escolar. Um impedimento aqui aparece de forma mais contundente para as famílias que não têm recursos para prover estas complementações, mas não como demanda defendida pelo movimento de cerceamento da ida dos filhos à escola.

Se a violência escolar é reflexo de uma violência social que precisa ser trabalhada, inclusive na escola, para que seja superada, e a participação da escola nisto é fundamental, e se as famílias já podem interferir em que tipo de escola e que qualidade de conteúdo os seus filhos podem ter (evidentemente com muita diferença, decorrente da desigualdade econômica que atinge as famílias), qual seria mesmo o problema para que todas as crianças permaneçam obrigadas a frequentar a escola, em parte de suas vidas?

Visitando os sites de dois movimentos brasileiros em defesa do "ensino domiciliar"  (movimentos que organizam famílias para impedir os próprios filhos de frequentar escolas), os discursos (textos e imagens) apresentam:

- argumentos de família retratadas como brancas, que vivem em espaços sociais muito diferenciados na média da sociedade brasileira, pregando a merecida separação "de seus filhos" de outros que frequentam as escolas. Este discurso é uma repaginada de argumentos eugenistas, separando o que seriam crianças boas desde o seu nascimento, que não merecem conviver em escolas deste país, porque teriam uma família que poderia prove-las de um ambiente melhor (mais limpo, organizado, saudável);

- discurso de ódio aos professores, apresentados como doutrinadores, pervertidos ou esquerdistas. Partindo da ideia de que seria tudo a mesma coisa - doutrinadores, pervertidos e esquerdistas, os discursos apresentam a família como espaço da formação moral adequada, da imparcialidade, da doutrina adequada, enquanto as instituições escolares seriam os antros de cooptação ideológica;

- defesa de que os estudos escolares não podem desmerecer ou contrapor o que aparece na Bíblia. O argumento consiste em veicular a ideia de que toda a verdade e conhecimento vem da Bíblia e o ensino que possa não ser compreendido com esta base seria uma perversão.

A análise destes discursos nos leva a compreender os problemas: 

- filhos entendidos como propriedades dos pais. Se é legítima a preocupação de que as crianças não devam ser "propriedades do estado", como os discursos pró impedimento de crianças irem a escola pregam, o contrário também é recíproco - crianças não são propriedades de seus pais. Crianças são pessoas, tem direitos e o acesso à escola é um deles, não podem, portanto, depender da vontade ou condição dos pais o exercício deste direito. O direito de ir à escola é um direito a conviver com famílias que não sejam a sua, com referências religiosas e de mundo diversas, com a pluralidade de ideias na sua formação escolar. Conviver com a diferença é potência na construção de uma sociedade democrática. Existe um direito envolvido diretamente à frequência escolar - direito de conviver com famílias diferentes da sua e que irão contribuir para sua formação em convívio nesta sociedade;

- casa como espaço de qualidade do conteúdo a ser acessado e segurança. Os conteúdos a serem ensinados na escola são permanentemente disputados entre as áreas de conhecimento, pesquisadores, necessidades emergentes da humanidade. Esta disputa sobre os conteúdos escolares é travada em espaços de governo, de pesquisa e também na vida cotidiana. É sempre uma disputa política que se dá em arena social. A busca da convivência respeitosa entre as pessoas, os gêneros, as práticas religiosas, as culturas é uma demanda social a ser respondida coletivamente. Esta mediação, entre o que se pretende ensinar e o que as crianças aprendem, entre o que a sociedade demanda para a escola e o que o grupo social demanda para sua formação, precisa de uma qualidade que a família é incapaz de suprir - a qualidade da pluralidade, do imediato dos encontros escolares, das autonomias, dos diálogos entre os diferentes. Encontros, diálogos e trocas que se dão fora da "super"visão (ao menos direta) dos pais, mas de um corpo técnico, formado para este fim, que são os profissionais da educação. Esta mediação é de mais qualidade, porque mediada por pluralidades e não fundamentalismos de qualquer ordem. Construir a sociedade com todos e para todos, em espaço público, submetido à avaliação da sociedade e não do espaço privado das famílias é o desafio. Diz um ditado africano: é necessária uma aldeia inteira para educar uma criança. Voltamos a pergunta inicial: a quem interessa que as crianças não possam acessar à escola como parte de seu processo educacional? O que de tão grave um corpo técnico, formado para este fim, submetido ao olhar público sobre seu trabalho, poderia prejudicar tanto a uma criança?

Segue a live da ANPED referida nesta postagem:



terça-feira, 6 de abril de 2021

Curso Ciclos na Educação Escolar - Edição 2021 UNIRIO - Já em andamento

Curso de Extensão Ciclos na Educação Escolar - Edição 2021 - atualização em 05-05-2021

Já iniciamos os trabalhos no Curso, caso você esteja inscrito e sem receber mensagem orientadoras dos trabalhos, por favor, encaminhe uma mensagem para educpolunirio@gmail.com 

O curso (on line) é oferecido para professoras/es da educação básica que trabalhem em escolas em ciclos e é totalmente financiado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), sem custos para os participantes. Os estudos são vinculados ao Projeto de Extensão Educação é Política.

A atividade contribui com a pesquisa Gabinete de Pesquisa em Desenvolvimento Curricular, coordenada pela Profa. Andréa Rosana Fetzner (Krug)  e, este ano, também terá o enfoque em planejamentos dialógicos.

De inspiração em organizações de ensino de base dialógica, tais como o Tema Gerador (inspirado em Paulo Freire), o planejamento por Complexos (Pistrak) e os projetos de trabalho de perspectiva crítica (Menga Ludke), esta pesquisa, de orientação participante, estuda sobre a organização em ciclos e as práticas curriculares e avaliativas que sustentam este tipo de organização escolar. 

Carga horária: 30h

Certificação: Curso de Extensão Unirio

Encontros síncronos em: 26.04; 24,05; 07.06; 28.06, das 19h às 21h

ATENÇÃO O HORÁRIO DO CURSO FOI ALTERADO PARA 19h à 21h

Inscrições encerradas.

Contatos: educpolunirio@gmail.com






sábado, 19 de dezembro de 2020

Série 8 em Istambul: exercício intercultural, provocações pra ver de jeitos outros

A série 8 em Istambul (dirigida por Berkun Oya, 2020) é uma das melhores séries que assisti este ano. Meu olhar, em todos os sentidos da palavra, foi submetido a um exercício filosófico-intercultural-prático (rsrsrs) fundamental para os desafios que as mudanças sociais nos provocam, desde que outros costumes, ligados à vestimenta, religiosidade, relações familiares são colocados em convivência com costumes antagônicos, em um mesmo território. 

O jeito que a câmera acompanha estes "encontros" entre costumes divergentes é muito interessante: as imagens são mostradas de forma mais "fechada" nos primeiros episódios, e vão se abrindo lentamente. A câmera nos permite viver o que a série provoca: conforme o que vemos, entendemos. O nosso olhar vai mudando, tanto pela forma como a câmera mostra os espaços, quanto pelo que conseguimos ver dos personagens: pouco a pouco, exigindo um exercício de percepção contínuo. A nossa "vista" vai alcançando aspectos da história que nos permitem entender melhor o outro, identificar traços culturais comuns e distantes que convivem num mesmo território. A fotografia do filme "enquadra" o que se vê da realidade, e vai alargando o campo de visão aos poucos, mais ou menos o que pode acontecer com a nossa vida, se nos mantivermos atentos e abertos ao tanto ao novo quanto ao tradicional, que nos chegam quando deixamos de enxergar um único padrão cultural como possível.

Podemos fazer uma analogia entre o que Paulo Freire destacava como realidade vivida e realidade percebida e o papel da educação dialógica no processo de percepção mais ampla da realidade. Embora Freire tenha o foco em percebemos mais sobre nossa própria existência (sem negar as implicações coletivas desta existência) e o filme tenha um "compartilhamento" entre existências culturalmente antagônicas (em algumas questões), o movimento de percepção é o mesmo. O filme dialoga com nossas percepções (tal como Freire fundamenta sua proposta), as conduzindo por caminhos complexos, mostrando que nada "apenas é", mas que as situações "estão" em construção. Um exemplo envolve o consultório da psicanalista: no primeiro episódio, o que a imagem "mostra" dele, e das personagens, nos induz a percepções que se quebram, ou se complexificam, no desenrolar da história. O enquadramento da filmagem "desenha" para o espectador esta questão: o que vemos depende de onde a câmera nos deixa ver, de onde nossa visão alcança. As imagens mudam de ângulo, especialmente de "enquadramento": se é fechada, se é aberta, de cima para baixo da rua, ou de cima para baixo do apartamento urbano, da casa na zona rural; se é lateral, se é diversa, por olhos outros, de personagens outras, a mesma cena, circunstância, personagem, se apresenta diferente. O ambiente é diferente, a persona é diferente, e as possibilidades de contato, compreensão, passado e futuro são diferentes. Na primeira vez que vemos o consultório da psicanalista, o enquadramento que a câmera nos dá, e a conversa que assistimos entre Meryem (Öykü Karayel) e Peri (Defne Kayalar), nos levam a construir uma imagem de como seria o consultório, onde ele estaria situado, quem seria Meryem e quem seria Peri, muito diferente do que o próximo enquadramento, no próximo episódio, vai demonstrar e assim, sucessivamente, sobre as 8 principais personagens, enredadas, como o símbolo do infinito (também representado no 8), pode nos sinalizar. Estas mudanças de lugar onde a câmera se situa vai ampliando e complexificando nosso olhar sobre espaços e personagens, até o último episódio. E isto vale para as 8 personagens: Meryem (Öykü Karayel), Peri (Defne Kayalar), Ruhiye (Funda Eriygit), Yasin (Fatih Artman), Sinan (Alican Yücesoy), GulbinTulin Özen), Melisa (Nesrin Cavadzade) e Hayrunnisa (Bige Onal). [considerar que os nomes dos atores podem não estar corretamente grafados, uma vez que encontrei grafias diferentes na Internet]

A série também aparece (na internet) com o título de Ethos e, de fato, as relações em evidência na série são perpassadas por práticas culturais ora comuns (a troca de sapato na entrada das casas), ora em conflito (o uso/não uso do véu, uso/não uso da religião, uso/não uso da psiquiatria), ora em encontros. São subjetividades que se misturam, apelando para a ideia de que existem elos, práticas, percepções que se assemelham, de forma a cruzar as fronteiras de gênero, classe social, religião. A solidão de Ruhiye aparece em Yasin, está em Sinan e, de certa forma, perpassa as diferentes personagens, sejam elas principais ou periféricas. As verdades parciais, as meias mentiras, as possibilidades e as rupturas, mas, sobretudo, a continuidade de todos em todos, novamente, a expressão do 8 como infinito. 

O nome original é Bir Başkadır; assisti na Netflix.

Aqui acesso a ficha técnica: https://filmow.com/8-em-istambul-1a-temporada-t308649/ficha-tecnica/



segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Palestra "Os Desafios para a Escola em 2021", Grupalfa, Conversas com Professoras, UFF

 Aqui vocês encontram os slides que utilizei em nosso encontro de hoje, 07.12.2020, no evento Conversas com Professoras, do Grupalfa, UFF.

Eu gostaria de ter um pouco mais de certezas, mas, na ausência destas, para este momento tão delicado, trouxe meus desejos de que percebamos o quanto mais complexo é o momento em vivemos, longa a jornada de transformação que precisamos e coletiva a luta a travar. 

Um abraço e meu obrigada a quem compareceu.

Slides Os Desafios para a Escola em 2021

domingo, 1 de novembro de 2020

Desafios da Formação de Professorxs nas Licenciaturas - Palestra na II JOPEDLIC - Jornada das Disciplinas Pedagógicas das Licenciaturas em Rio Bonito

 Palestra proferida na  II  JOPEDLIC - Jornada das Disciplinas Pedagógicas das Licenciaturas em Rio Bonito

Segue a palestra proferida na temática da formação de professorxs, em Licenciaturas, realizada à convite do Polo CEDERJ de Rio Bonito, em 16.10.2020.

A palestra recupera algumas compreensões sobre os processos educativos escolares, por meio da retomada de concepções de aprendizagem-ensino, de educação, um pouquinho da educação popular e os desafios que enfrentamos, do ponto de vista das políticas e da autonomia docente. 

https://drive.google.com/file/d/1nPZw9RJ8rje2uvLWZDQ6aOzmxJds3GjG/view?fbclid=IwAR1hiDPPNt9IGTv6Y9UPn-cb_2uGnP4j-HA0zx9emAj6xTscu2BDDTKMkI8

Acesso aos slides Desafios da Formação

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Desafios Curriculares em Tempos de Pandemia: adaptações e práticas de ensino aprendizagem emergenciais

Compartilho a palestra realizada no II Ciclo de Palestras Música e Educação, organizado pelo Campus Centro e Departamento de Educação Musical do Colégio Pedro II em 16.09.2020